terça-feira, 26 de novembro de 2013

Hoje eu acordei pensando em você


Rio de Janeiro,  Botafogo, dezembro de 2012.



Oi, amiga. Linda amiga. Amada amiga.
Hoje eu acordei pensando em você. Lembrei que você sempre me acordava com música alta e se irritava quando eu me demorava na cama. Lembrei que você gostava de sair para caminhar às 07h da manhã ao som de um bom reggae. Lembrei que seus olhos miúdos observavam tudo. Olhos de coruja, eu dizia. Lembrei, minha amiga, que eu já não te vejo há exatos cinco anos.
 
Cinco dolorosos anos em que só ficou, de nós duas, a dor da saudade. Mas não é só dor. É uma angústia infinda. Aquela angústia de saber que talvez eu nunca mais te veja. Aquela angústia de saber que seus olhos miúdos já não me pertencem. Aquela angústia que que me faz acordar assim, doente de saudade.
 
Acho que também lembrei de você por conta do verão. Lembro bem que você venerava a praia, o sol, o mar. Gostava de virar camarão. E sempre dizia, toda feliz, que estava ficando pretinha, feito eu. Você me acolheu sem pedir nada em troca. Você me dava a sua vida de presente todos os dias. Você sofreu comigo a dor do preconceito. Guerreou comigo, e mesmo sendo branquinha e bonequinha, tomou a briga pra si. Você me dizia: eu também sou responsável, essa luta também é minha.
 
Linda amiga. Já são tantas e tantas cartas acumuladas pra você e sobre você, que eu transformei todas elas em um móvel da minha sala. Ficam ali, ao lado do sofá, empilhadas umas às outras clamando resposta. Eu já não sei mais seu endereço. Tenho medo de saber. Tenho medo de ter notícias de você. Tenho medo de descobrir que você acorda alguma outra amiga com música alta. Nutro um ciúme silencioso, doentio e inútil por você.
 
Queria poder te contar dos meus dias, dos meus amores, das minhas moradas. Queria poder te dizer que eu já tenho 4 sobrinhos e que o meu irmão caçula se tornou um homem alto, lindo, que anda de skate e ouve Ponto de Equilíbrio. Lembra aquele dia do campeonato de arroto? Lembra como ele era um menininho? Pois é, ele cresceu junto com o tempo. Lembra que eu odiava o Rio de Janeiro? Pois é, minha amiga, eu paguei com minha língua e hoje eu moro nessa cidade maravilhosa. E morro de amores por ela todos os dias.
 
Esses dias, andando pela Lapa, me veio à memória o dia em que você me falou que gostava do Rio de Janeiro porque gostava das coisas simples da vida, como as batidas do reggae - aliás, quase tudo na vida você comparava às batidas do reggae. Eu retruquei, disse que no Rio de Janeiro só tinha praia e que praia tinha no Brasil inteiro. Pobre de mim. Coitada de mim. Diminuí o Rio aos seus bons quilômetros de Copacabana e Ipanema.O Rio é Copacabana e Ipanema. Mas é mais. Muito mais. O Rio é paradoxo, é caos, é beleza imensurável, é ousadia, é enfrentamento, é vida, é samba. O Rio é reggae. Eu aprendi a amar esse lugar, minha amiga, dia-a-dia. Ele foi me conquistando - do Funk à Bossa Nova - foi me enfeitiçando, foi me pegando com tesão. Quando eu me vi, estava submersa nas ruas, nos cheiros, nos quereres. O Rio me permitiu viver tudo, amiga. Eu disse tudo. Exatamente do jeito que você está pensando.
 
Aquele meu amor pelo samba, continua. Mais forte ainda, eu diria. Morar em uma cidade que respira repique, pandeiro e tamborim só fez esse amor se transformar em um pedaço de mim. Encontrei algumas paixões pelo caminho. Colecionei um tantinho de lágrimas com a mesma intensidade em que colecionei risos. Deus me deu a oportunidade de conhecer amigos. Amigos de cerveja, de bebedeira, de choro, de luta. Amigos de fé e de cumplicidade. Amigos que me acolheram também. Amigos, desses assim como você, que o tempo não apaga.
 
Tô escrevendo pra você enquanto eu observo o céu carioca. Acho que essa carta, na verdade, é uma prece. Acho que é oração. Acho que é o jeito que eu tenho encontrado, todos esse anos, de te manter viva em mim. Acho que é um pedido silencioso para que você venha. É uma carta egoísta. Hoje, minha amiga, eu queria você só pra mim.
 
E sim, eu acho que se eu fizer um esforço, eu consigo te reencontrar. Mas me falta a coragem. Tenho medo, receio. Talvez eu precise que você permaneça na minha vida exatamente assim, transformada em cartas e mais cartas e mais cartas.
 
Quem sabe, minha amiga, você seja na minha vida as batidas do reggae.Ora pausadas, ora demoradas, ora doídas.
 
Eu, de minha parte, te ofereço o batuque do meu samba.
 
Te ofereço mais. Te ofereço todas as minhas palavras, todos os meus acentos e todos os meus versos.
 
Te ofereço o meu mistério. O resto, minha amiga, o resto é bobagem. Bobagem.
 
Lu.
 
 



domingo, 17 de novembro de 2013

Kimi

São Paulo, Liberdade, junho de 2013.

Kimi,

Hoje, domingo, passei pela Liberdade e pensei em você.
As ruas do bairro mudaram, a praça mudou, não vejo mais o seu banco preferido - onde nos conhecemos, por sinal. Os rostos já não são familiares. Tudo diferente. Eu também mudei. E, desde àquele domingo, já se passaram 6 anos. Numa outra vez, passei pelo prédio e descobri que o Sr. Fujimoto se mudou para Santos. Eu queria notícias suas, também queria saber como foi que você partiu. O porteiro não se lembrou de você.

Doeu perceber que o seu rosto, sua vida, cairam no esquecimento. Realmente, permanecemos para poucos. Gostaria de dizer que, em mim, você ficou. Ficou o seu nome, sua voz, seus olhos pequeninos e rasgados, ficou o seu sorriso tímido.
Me lembro, também, Kimi, do dia que toquei em seus cabelos brancos e a vi se encolher feito bichinho assustado, dizendo: “Kimi não sabe receber carinho. Kimi nunca teve carinho.” Eu te ensinei carinho, Kimi, e você me ensinou que o coração e a alma falam aquilo que a boca não dá conta de dizer. “Moça não tem de preocupar que não sabe falar japonês, coração fala, e Kimi vê o coração de moça”. Ensinar carinho para uma mulher de 90 anos e, de graça, aprender que, para tocar e alcançar o outro, basta o pouco que temos. Basta querer. Basta sentir. Basta ter coração.
Coração foi a sua linguagem. Me lembro que te fiz uma poesia, e sua resposta foi: “Parece que moça leu o coração de Kimi”.

E, por falar em coração, na última vez em que nos vimos e você estava lúcida, eu estava sozinha e não tive coragem de dizer que não namorava mais “o moço”. Vocês se gostavam tanto. Peço desculpas por não ter te contado, quis poupá-la.  Fosse hoje, eu contaria.
O amor acaba, não é? E aquele amor se findou, ou melhor, se transformou só em carinho. Outras pessoas vieram, e conheci a paixão, D. Kimi. Descobri que paixão dói. Mas, me senti viva e, por isso, feliz. Descobri tantas outras coisas que o coração é capaz de sentir. Descobri, ainda, que se tratando dos quereres, somos e seremos sempre aprendizes. E o amor está aí, à espreita, chega quando menos esperamos, sempre pronto a nos pregar peças, sabores e dissabores.

Ainda guardo o seu broche - em formato de flor. E a presilha, tão linda, usei algumas vezes, mas perdi numa mudança. Uma pena. Adoraria usá-la de novo, combinava com a cor do meu cabelo.


Sabe as histórias que você me contava, de sua juventude? Continuam vivas. Histórias não morrem, transpõem tempo, espaço, gerações, cores, cheiros, e permanecem inteiras em tudo o que a memória achou por bem eternizar. A nossa história será uma dessas. Sei que um dia ela chegará aos ouvidos de meus filhos, netos, das pessoas que eu amo.

Quando a vi pela última vez, você estava mal, inconsciente, mas se agitou e se debateu quando ouviu a minha voz. Você me reconheceu? Sinto que sim, Kimi, e isto me conforta. Conforta pois sei que nunca deixei de dizer o quanto foi lindo esta nossa conexão. Conforta pois sei que nosso encontro foi também de almas. E esta cena já é das coisas mais marcantes da minha vida.
Agora, permanece a saudade. Permanece a certeza de que a vida é a arte do encontro. E, que bom ter te encontrado. Domo arigato gozaimashita!

Com amor, Carol/Moça.


"Quero que saibas que me lembro
Queria até que pudesses me ver
És parte ainda do que me faz forte
E, pra ser honesto,
Só um pouquinho infeliz.
Mas, tudo bem
Tudo bem."

sábado, 2 de novembro de 2013



Gosto de cartas. Sempre gostei.

Gosto tanto, que das muitas e tantas cartas que eu escrevi – e escrevo – raras são as que não voltam para a última gaveta da minha escrivaninha. Umas se amontoam às outras em meio à poeira. Poeira que permanece ali não por falta de limpeza, mas pelo excesso das marcas que o tempo insiste em deixar.
Eu tenho uma timidez que me incomoda. Tenho uma falta de coragem de olhar para aqueles olhos castanhos e dizer o quanto são lindos, o quanto me encantam. Aí, por não verbalizar, eu transformo aqueles olhos castanhos em uma, duas, mil cartas. Esses olhos castanhos transformam-se em pretos, amarelos, coloridos – a depender do meu estado de humor e do meu grau de inspiração.
Eu estabeleço com minhas cartas uma relação democrática de me arriscar sempre que quero. Elas me permitem sonhar. Mais do que sonhar. Elas me permitem transformar meus sonhos em palavras, em momentos, em história. Elas aceitam a minha raiva e a minha dor. Aceitam os meus extremos.
E ficam ali, guardadas e escondidas na tal gaveta. Me falta a tal da coragem de ir ao correio. Não gosto de pensar em como seria a reação daqueles olhos castanhos ao saber que, para mim, são os olhos castanhos mais lindos que eu encontrei nos vagões da vida. Não gosto de parecer ridícula, mesmo sabendo que a ridicularidade está presente em quase todos aqueles sensíveis à vida.
Confesso que dia desses eu cheguei a ir ao correio. Me veio uma coragem repentina e eu, no meio do trabalho, pensei – é agora – e inventei alguma desculpa qualquer pro meu chefe. Cheguei ao correio, cheguei a pegar a senha A28. Permaneci ali - linda, feliz e corajosa - até que o atendente grisalho gritasse em alto e bom som: Senha A28, por favor.
Estremeci. Minhas pernas bambearam. Um misto de pânico, terror e aflição. Desisti. Fingi que não era comigo e saí de lá como quem foge de um cão raivoso. Não sei. Não sei se desisti porque no fundo eu não queria que essa carta chegasse ao seu destinatário ou se é porque eu me senti intimidada pela chamada pouco discreta do atendente grisalho. Quando ele me gritou a tal da senha A28, pra mim foi como se ele falasse – Ridícula romântica da parada que vai se declarar para um tal de olhos castanhos que nem é tão bonito assim, venha pagar seu mico. 
Juro. Me senti despida. Parecia que o tal do atendente e todas aquelas 30 pessoas que ali aguardavam sabiam de todo o conteúdo da carta. Pareciam debochar de mim. Então, eu desisti. 
Voltei pro trabalho. Me frustrei. Me acusei. Me puni. E escrevi, depois desse episódio, tantas outras cartas. Todas tiveram o mesmo destino – a tal da última gaveta da escrivaninha.
Quase todas, quero dizer. Digo quase todas porque, feliz que sou, encontrei nessa minha estrada alguém que também passou a vida escrevendo. Passou a vida se frustrando. Passou a vida olhando com pavor o tal do atendente grisalho. Aliás, #quem nunca?
Assim, em meio ao alvoroço dessa nova onda tecnológica em que para se enviar uma carta é necessário apenas um enter, nós - eu e ela - resolvemos juntar nossa timidez para que ela se transformasse em coragem. Ou melhor, para que ela se transformasse em um endereço eletrônico público em que, lá das ilhas Maldiva, alguém leia e ria das nossas ridicularidades, e se reconheça nela.
Nós, eu e ela, resolvemos assumir o mais ridículo em nós, o mais brega. Decidimos que nossa verdade deve ser compartilhada. E cá estamos.
As cartas, em nossas vidas, cumpre uma função que eu considero fundamental. Elas nos permitem que não percamos a ternura.
Podemos perder a postura, o prumo, o trato. Mas não podemos perder a ternura, jamais.
Que façamos dessas cartas poesias.
E - pra vida ter mais sentido - que sejamos poesia. Poesia.

Luana Rocha.